terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Os órfãos da inquisição

Sheila Sacks


São milhares de brasileiros com sobrenomes comuns a cidadãos brasileiros: Pereira, Araújo, Almeida, Albuquerque, Bezerra, Caldeira, Cabral, Dias, Cardoso, Melo, Lopes, Salgado, Oliveira, Mendes, Saldanha, Moreno, Pinto, Costa etc. Entretanto, há 500 anos, nas terras da Península Ibérica, os antepassados desses milhões de brasileiros portavam nomes e identidades diferentes: Aboab, Cohen, Abravanel, Aruch, Obadia, Abulafia, Danon, Eskenazi, Hakim, Finzi, Gabirol, Gabbai etc. A mudança drástica ocorrida em suas raízes familiares, culturais e religiosas e a ruptura radical com um passado milenar peculiar e único, resultaram em uma inimaginável legião de órfãos de pais biológicos vivos. Afinal, o que significa um estreito lapso de cinco séculos frente à imensidão de um cenário macro formado por mais de três milênios de história e tradição?

A procura pela identidade primeira, representada pela ancestralidade original, tem mobilizado milhares de pessoas em várias partes do mundo interessadas em encontrar respostas a uma série de sentimentos reprimidos e a incontáveis dúvidas existenciais. Com o intuito de ajudar a essas pessoas especiais a encontrar as suas raízes, foi fundada em 2004, a organização SHAVEI ISRAEL (Retorno a Israel), com sede em Jerusalém. A instituição está presente em sete países, além do Brasil. Seu dirigente, Michel Freund, acredita que existam 13 milhões de descendentes de judeus que ainda guardam alguma prática judaica de seus antepassados, 500 anos depois da tragédia e das fogueiras da Inquisição.

PELO RETORNO DE UM POVO: A MISSÃO MAIS QUE POSSÍVEL

Michael Freund, 38 anos, é um nova-iorquino formado em Finanças e Política pelas Universidades de Columbia e Princenton, que vive em Israel há doze anos, mas percorre meio mundo para descobrir e ajudar os “judeus perdidos” a reencontrarem a sua herança milenar. Fundador da Organização SHAVEI ISRAEL (Retorno a Israel), com sede em Jerusalém, Freund mantém contato com as várias comunidades de descendentes dos chamados “falsos cristãos” ou “Bnei Anusim” (aqueles que foram forçados à conversão ao catolicismo, durante a Inquisição), na Europa, América do Sul, África e Ásia.

Organizando seminários e instalando centros de estudos e de apoio para atender a todos que têm um real interesse em recuperar as suas origens, o SHAVEI ISRAEL conta com um grupo de prestigiados educadores e rabinos que realizam as conversões sempre de acordo e com a aprovação do Rabinato de Israel.

Em 2005, Freund se encontrou com pessoas de Burma, Espanha, Peru, Índia, Colômbia e Japão que tinham feito o “monumental passo de formalmente se unir ao povo judeu”. Eram biólogos, tradutores, professores e até mesmo um ex-padre católico. “Nesta época em que tantos jovens judeus abandonam as suas raízes judaicas, ver este despertar, sem precedentes, acontecendo sob os nossos olhos, com pessoas batendo a nossa porta, com sinceridade, suplicando para entrar, é emocionante e inspirador”, enfatiza.

JUDEUS DA SELVA

No Brasil, a representação do SHAVEI fica em Recife e é dirigida pelo rabino Abraham Amitai. Historiadores acreditam que o nordeste do Brasil abriga uma das maiores concentrações de “Bnei Anusim” do mundo. Ainda na América do Sul, Freund enviou, em 2006, um rabino para uma cidade na selva amazônica peruana, a pedido da comunidade de Tarapoto, nos Andes, a 600 quilômetros ao norte de Lima, capital do Peru. Conhecida como a cidade dos Salmos, ela possui algumas centenas de descendentes de judeus marroquinos que conservam sobrenomes como Ben-Zaken, Ben-Shimon e Cohen.

Outro grupo que o SHAVEI tem dado assistência é aquele formado pelos descendentes da tribo perdida de Menashé, que vive no noroeste da Índia, nas cidades de Mizoran e Manipur. Mil deles já imigraram para Israel e mais 7 mil esperam fazer o mesmo. Eles se declaram descendentes dos judeus exilados da terra de Israel, pelos assírios, há 2.700 anos. Quatro dos cinco livro da Torá já foram traduzidos diretamente do hebreu para a língua local – Mizo.

Antes de se dedicar à causa dos “judeus perdidos”, Freund trabalhou com o Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, no cargo de vice-diretor de Comunicações e Planejamento Político do Governo. Foi articulista do prestigiado jornal “Jerusalém Post” e o seu blog – Fundamentally Freund – destacou-se entre os três melhores de Israel, em 2005, na categoria de política e negócios e de defesa dos interesses do país.

RETORNO AO LAR

A seguir, Freund responde as nossas perguntas e esclarece alguns pontos:

O que levou o senhor a fundar, em 2004, uma instituição como o SHAVEI ISRAEL?

- Eu decidi lançar o Shavei Israel porque percebi que o povo judeu encontrava dificuldades em ajudar mais efetivamente os descendentes dos judeus ao redor do mundo que desejassem investigar as suas origens judaicas. Em anos recentes, o fenômeno da globalização surgiu e alcançou aqueles indivíduos e comunidades que tinham uma conexão histórica com o povo judaico, e que começaram a manifestar um crescente interesse em se “reconectarem” a sua herança judaica. Eu acredito que é nossa responsabilidade, como judeus, adotar essas pessoas, estender-lhes a mão e dar as boas-vindas em seu retorno ao lar.

Através dos séculos, como conseqüência de uma cruel perseguição e exílio, muitos judeus foram forçados a se converterem a outras religiões ou deixar de lado a sua identidade judaica. Tomemos, por exemplo, Espanha e Portugal no século XV, quando centenas de milhares de judeus foram obrigados a se converterem ao Catolicismo contra a sua vontade. Apesar disso, muitos continuaram a seguir o Judaísmo, em segredo, preservando a sua identidade judaica, mesmo conscientes do grande risco que esta prática envolvia. Eles eram conhecidos como “Marranos” ou “Bnei Anousim”, na língua hebraica, que significa “aqueles que foram forçados”. Eles mantiveram a sua identidade judaica secretamente, de geração em geração, e, atualmente, seus descendentes podem ser encontrados em toda a parte do mundo onde se fala espanhol e português, incluindo, logicamente, o Brasil, onde, talvez, esteja localizado o maior número de descendentes de judeus, possivelmente uma cifra que chega a milhões de pessoas. São exatamente estas pessoas que nós desejamos alcançar.

Contudo, eu precisaria acrescentar que o Judaísmo não é uma religião missionária e nós não somos uma organização missionária. Em vez disso, nós trabalhamos com pessoas que não apenas têm uma ligação biológica com o Judaísmo e os judeus, mas também uma natural identificação e que estejam interessadas em fortalecer esta conexão mais adiante.

Israel e o povo judeu defrontam-se com um imenso desafio demográfico. Nós somos um pequeno povo – apenas 13,5 milhões de judeus em todo o planeta! – e nossos números não crescem como seria desejável. Por conseguinte, indo ao encontro de nossos “irmãos e irmãs perdidos” e trazendo-os de volta para a congregação, nós poderemos nos fortalecer, tanto espiritualmente como numericamente.

Quais são as grandes vitórias do SHAVEI em seu trabalho?

- A instituição tem se expandido de forma extraordinária nesses anos, e nós estamos presentes, agora, em oito países ao redor do mundo, incluindo Espanha, Portugal, Brasil, Índia, Peru, Rússia, Polônia e China. Na Índia, nós temos dois centros educacionais para os “Bnei Menashé”, um grupo de descendentes de uma Tribo Perdida de Israel.

Em março de 2005, o Rabino Chefe Sefaradit de Israel, Rabbi Shlomo Amar, reconheceu formalmente os “Bnei Menashé” como “descendentes de Israel”, e então nós organizamos a ida de uma Corte Rabínica (Beit Din) à Índia, em setembro do mesmo ano, onde foi possível converter 200 membros da comunidade que retornaram ao Judaísmo.

CONVERSÃO FORMAL

- Na Espanha, Portugal e Brasil, nós temos emissários oficiais atuando em Palma de Majorca, na cidade do Porto e Recife, onde trabalham com os rabinos para a comunidade local e ao mesmo tempo realizam serviço voluntário com os Bnei Anousim em diversas áreas. Nós organizamos seminários e simpósios, várias vezes ao ano, e temos publicado um bom número de livros e folhetos em espanhol sobre a história judaica, sua cultura e tradições. Também em Jerusalém nós mantemos o Instituto “Machon Miriam”, de língua espanhola, para conversão e “retorno”, onde estudantes se preparam para submeter-se à conversão formal ao Judaísmo.

Nós trabalhamos, ainda, com os descendentes dos judeus da comunidade de Kaifeng, na China, com os judeus de Subbotnik, na Rússia, e com os “judeus secretos” da Polônia. Igualmente patrocinamos uma variedade de cursos profissionalizantes para os novos imigrantes que chegam a Israel, providenciando bolsas de estudo e computadores para os estudantes carentes e fornecendo ajuda de custo nos primeiros meses de sua chegada ao país. Todo o nosso trabalho é conduzido de acordo com a Lei Judaica e sob a supervisão contínua da Chefia do Rabinato de Israel.

De que forma as pessoas podem ajudar o SHAVEI ISRAEL?

- Um de nossos objetivos também é formar uma consciência entre a comunidade Judaica acerca da existência de grupos como os do “Bené Menashe” e do “Bnei Anousim”. As pessoas precisam entender que estes grupos não existem apenas em livros de história – eles estão bem vivos e estão clamando ao povo judeu para que os ajudem e apóiem. Pessoas interessadas em conhecer um pouco mais sobre o nosso trabalho podem visitar o nosso site www.shavei.org, onde encontrarão informações em inglês, espanhol, português e catalão. Também podem enviar e-mail , no endereço spanhish@shavei.org. Todos serão muito bem-vindos.




(09 de junho/2007)
CooJornal no 532


Sheila Sacks é jornalista
trabalha, há 25 anos, na Assessoria de Imprensa da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop). Também escreve para o NOSSO JORNAL-RIO, uma publicação voltada para a comunidade judaica.
Rio de Janeiro, RJ
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